FILME ATLANTIQUE
Filme Atlantique, Ada é uma menina de 17 anos apaixonada por Souleimane, um jovem pedreiro que está trabalhando na construção de um prédio futurista à beira mar no subúrbio de Dakar, no Senegal.
O único problema é que ela foi prometida para outro homem. Quando, certa noite, os trabalhadores desaparecem no mar, seus espíritos retornam possuindo o corpo de suas namoradas para buscar justiça.
Data de lançamento: 29 de novembro de 2019 na Netflix (1h 44min)
Direção: Mati Diop
Elenco: Mama Sané, Abdou B., Ibrahima Mbaye mais
Gênero: Drama
Nacionalidades: França, Senegal, Bélgica
Link do vídeo: Atlantique
SINOPSE E CRÍTICA
Os operários surgem como uma força de trabalho explorada em Dacar, a capital senegalesa na qual a convivência, no mesmo quadro, entre a opulência dos prédios nababescos em construção e as favelas que abrigam a maior parte da população é acintosa e sintomática.
A burguesia local, como todas as demais, se alimenta da pobreza alheia, espreme o labor dos menos abastados e com isso ascende, garantindo soberania sobre um povo cada vez mais encurralado.
Essa leitura política aparece com uma potência enorme nos minutos iniciais de Atlantique, o primeiro longa-metragem da cineasta francesa Mati Diop.
Há uma revolta dos sujeitos que não recebem há mais de quatro meses, com isso acumulando dívidas e, adiante, tentando o refúgio em outros países como a única saída para tentar escapar a um destino angustiante. Souleiman (Ibrahima Traore) rapidamente cede o protagonismo à sua amada Ada (Mame Bineta Sane) e o filme, inicialmente conduzido pelo olhar masculino, vai revelando uma profunda perspectiva feminina do todo.
Há o amor interditado pelos ditames locais. As tradições não permitem que os jovens apaixonados fiquem juntos. Ela, moradora de um lugar insalubre, está prometida ao sujeito abastado com quem não mantém vínculos afetivos.
Todavia, ainda que tangenciando a universalidade da peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, Mati Diop evita fazer da impedição a única dinâmica exasperante no horizonte.
De uma hora para outra, por falta de opção, os trabalhadores açoitados pela falta de dinheiro resolvem pegar o caminho difícil do oceano rumo à Espanha, em busca de uma vida menos acidentada.
Atlantique evoca constantemente a dramaticidade da travessia nunca apresentada diretamente, mas verbalizada pelos fantasmas que retornam para reclamar seus direitos, a fim de conseguir a justiça social.
As águas são frequentemente destituídas de sua faceta idílica, paradisíaca, tidas imageticamente como uma fronteira melancólica entre o sonho e o pesadelo.
Atlantique mira a conjuntura dos refugiados com um distanciamento expressivo. Ao invés de apresentar factualmente as intempéries dos tripulantes, a realizadora investe, primeiro, na dúvida, na falta de informações que amplifica a angústia dos que ficam.
Ela entremeia isso muito bem com os dilemas de Ada, a infelicidade do matrimônio com o homem completamente estranho, inclusive ao seu modo de vida. Segundo, há a potência do retorno dos espíritos que se apossam das mulheres com quem mantinham elos estreitos.
Essa marcha que, de certo modo, mescla as forças feminina e masculina, poderia ser mais bem moldada como insurreição alimentada por uma indignação amplificada post mortem.
Todavia, a vendeta sobrenatural, paralela à jornada de Ada em busca de notícias sobre Souleiman, é projetada como um grito parcialmente silenciado e impotente. Talvez por isso, soe mais melancólico do que necessariamente brutal ou agressivo.
Mati Diop cria uma interlocução densa entre o real e o fantástico, tanto que este não destoa daquele na perscrutação visual do cotidiano demarcado por infortúnios.
Em Atlantique os personagens são condicionados irremediavelmente pela imposição do dinheiro – uns se regozijam por tê-lo; outros sonham com a ostentação de sua posse; e há a parcela significativa que enfrenta a morte por não receber a sua fatia que, simplesmente, os faria subsistir.
Instaura-se uma lógica capitalista selvagem. A forte interpretação de Mame Bineta Sane faz de Ada mais do que uma protagonista catalisadora.
Ela é um símbolo dessa tragédia senegalesa, sobretudo por ser atravessada tanto pela verticalidade das convenções religiosas e sociais quanto por essa segregação monetária.
Trata-se de um filme poderoso sobre o urgente anseio por garantir-se indivíduo frente aos ditames excludentes da pobreza e do obscurantismo, o desejo de amar longe dos grilhões, de viver sem fome e medo.